14.2.07

UM ESTRANGEIRO NA ZAMBÉZIA, durante as cheias

Este texto é do JPT (José Pimentel Teixeira) publicado na sua Ma-schamba
Porque nem sequer lhe pedi para publicar, pelo menos aqui fica o obrigado.

De Quelimane ao rio Chire quase vai um dia. Dois camiões atolados há já 15 horas vedam a estrada, rodeados de uma meia dúzia que tapa todas as irreverentes opções. A surpresa de aí encontrar um mui recente ministro português, simpatia enérgica a gerar o desentupimento. No contraste com a minha displicência de Rothmans feita sinto os determinismos psicológicos. Há quem tenha o dom do poder e outros, como eu, olhamo-lo, quase sempre de viés. Esperando que milho e madeira desçam das viaturas converso com um indo-descendente, dez anos comerciando entre a Moita, o Laranjeiro e a Costa da Caparica. Ao “porque raio voltaste?” solta um “que sentido tem aquela correria?”: não há-de ser esse cofió a separar-nos, Adam! Algo envergonhado conta-me que, farto da espera, pagou 400 mil meticais para se descarregarem os camiões. E estes, logo que menos pesados metem a primeira velocidade e saem calmamente das suas covas.Rio-me de mim, qual psicologia, qual poder do Grande Homem Branco: “É a economia, estúpido!”.
Um padre na estrada, desses de décadas de mandioca e feijão com bicho, guerras, água morna, falhanços, malárias, que fazem este ateu sentir-se um pouco mais pequeno do que já é. Irritado, o velho! Narra o episódio do padre italiano que morreu há dias, arrastado nas cheias ao tentar levar doentes ao hospital. E do seu colega partindo em busca do corpo, irregulares caminhos, margens lamacentas, atolado vezes sem conta, o cansaço sem desespero da gente de fé. E do seu regresso, ainda sem sucesso, onde a polícia o multa em um milhão de meticais, que isso de nas buscas ter caído a chapa da matrícula…até pode ser verdade mas não apaga a ilegalidade.Determinismos culturais? Tradição, culto dos mortos, ritos prescritivos, enterro lá no lugar dos antepassados? Que idealismo, “é a economia, estúpido!”.
Perto de onde era o batelão do Chire, pequena travessia por roldanas, é agora uma infindável planície de água, bordejando a aldeia Pinda. As primeiras casas distam 50 metros planos do rio. Felicidade pela inesperada presença de Ventura, o meu motorista, pastor da igreja evangélica que aí professam. Numa pobre capela de pau-e-pique uma breve e alegre oração conjunta. Faço um apelo a que partam para zonas mais altas, pois as chuvas a oeste e as descargas vão aumentar. Já o administrador o disse mas não vislumbram razão para tal, nas cheias de 1978 as águas não ultrapassaram aquela árvore acolá, guardiã da secura a 20 metros da povoação. Empirismo puro, para racionalista aprender! Intercedo junto de Ventura para que os convença. Responde que não o fará, aquela gente não tem tecto noutro sítio e as suas machambas estão ali. Para onde irão? Fatalismo, inconsciência? Mais uma vez, “é a economia, estúpido!”.
Para trás ficou Quelimane, onde a beleza das mulheres até magoa. E testemunha, sem essas coisas do genoma, que a mistura das gentes é bonita. Nas esplanadas da cidade vou indagando como vivem as meninas que passam. Perguntas cujo caroço, vejo-o agora, é o sentimento de que dói menos uma mulher menos bela ser prostituta do que uma mais bela. Imoral moralismo! Que não, dizem-me, mesmo sendo ali porto isso não é mais generalizado do que noutros lugares por esse mundo fora. Mas lembram que muita rapariga procura um marido que a tire dali. Lembro o Primeiro Dia de Mafra, com o longínquo aspirante Boieiro aos berros, qual vedeta de Hollywodd, apelando à rusticidade pois os piores classificados iriam parar às ilhas “de onde virão casados”. E o frémito de horror que percorreu o ainda informe pelotão, imaginando o casamento com uma açoriana. É o mesmo, a troca do isolamento geográfico por outros isolamentos. Neste combate à lonjura, “é a estúpida economia” dos afectos, estúpido!
Gurué, verde montanhoso na falsa beleza da monocultura. Modernos rumores de futura indústria de capulanas bem nas nascentes do Licungo, todas essas tintas navegando até ao Índico, dando de beber às gentes, colorindo a Província. “É a economia, estúpido!”. Avaria madrugadora, marcho durante horas provando o envelhecimento. Uma moto passa e há-de voltar já liberta do pendura, um miúdo que me transportará para a cidade. À proposta de lhe “pagar o combustível” o jovem extensionista rural de Mocuba ri-se e diz-me “ó seu estúpido, nem tudo é economia”, que um dia o hei-de safar algures. Obrigado Felix dos Santos, pela boleia e pelo alívio.Por todos estes sítios se encontram europeus. Cooperantes, velhos cooperantes, ex-cooperantes, neo-cooperantes. Ali e acolá um comerciante, até um empresário. Tal como no sul toda essa gente vai partilhando cereais destilados e a opinião que a actual cooperação não ajuda o futuro do país, que algo tem de mudar. Estarão eles enganados, tal como os moçambicanos que de o acharem até já estão fartos de doadores? Sem respostas nestas noites distritais, lembro-me do meu pai e trunco-lhe as palavras: “a democracia é o alcatrão e a electricidade!”. Mas vai-se dizer isso, arriscar os empregos de expatriado ou os clientes de dolar no bolso? Deixar andar, “é a economia, estúpido!”.Risonhos, vêm centenas de homens na estrada. Logo procuro saber que se passa e do aglomerado ouço, espantado, “Maharishi”. Desde há alguns meses 1700 jovens meditam 4 horas diárias em troco de 270 mil meticais mensais. Pasmo, que raio, receber para meditar! Resquícios cristãos, a noção de que o transcendente exige pagar ao intermediário com o(s) espírito(s). E porquê assim, porque não o contrário? De facto, “é a economia, estúpido”, como tirar os homens do trabalho sem os compensar, quando vivem no limiar da economia de subsistência? E face aos que ainda agitam uma idílica agricultura tradicional vejam a sua desnaturalização, pois meditar potenciando equilíbrios pressupõe os desiquilíbrios. E talvez possibilite outros sincretismos, renovações, transformações. Por eles, coisas bem locais. Porque a mentalidade, essa “economia, estúpido”, coisas feias e bonitas, agradáveis ou não, está aí omnipresente. É deixá-la ir, e ainda bem que auto-meditada. Tenho que partir, mas a vontade é quedar-me por lá! Fica a esperança no sucesso desta ideia. Repito-me, se aliada ao “alcatrão e electricidade”, parece bem mais promissora que tanto “desenvolvimento” semi-importado.A norte, onde o Zambeze só dá o nome à província, o Alto Molocué, pequena vila dividida por esse rio. Vizinho da pequena ponte o Fotógrafo Soares, “fotografia tipo B.I”. Não resisto, desço as escadas, minto-me de colega e peço para fotografar. O velho fotógrafo, com o caudal em casa, dá-se à imagem junto dos seus. Proponho que saia dali, é visível que as águas vão subir. Calmamente aponta umas frágeis canas, habitual limite do rio, e às quais em breve este retornará pelo que não vê necessidade em partir. Respeito, mudo a conversa, responde-me que o negócio vai normal, mas que não chega para nova casa de tijolo. Ficará acompanhado da família, feita dique moral. De novo, “é a economia, estúpido!”.
A casa desabará meia hora depois, a água cobre a ponte. Lembro o padre e, aqui inútil, cruzo-a rumo ao Maputo, à Inês. E à notícia da morte de C. Geffray. Fica este país, agora desprovido de longínquo e magoado saber, mais pobre. Porque nem tudo, estúpido, é economia.
Março 2001

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